segunda-feira, 22 de agosto de 2011

As aventuras de Lady Alice - Os Herdeiros II.

Uma semana se passou e eu já estava me esquecendo do episódio de noites passadas. Estava tudo normal: Natasha, a cachorra gorda mórbida continuava gorda e mórbida, Nino permanecia tonto e minha dona a cada dia passa mais tempo na frente daquela tela junto duma coisa que ela fica apertando com a ponta dos dedos.
 Era um final de tarde quente e estava tudo lindo, florido, cheiroso. A casa estava calma e eu cochilava sobre o livro que Anny havia esquecido sobre a cama. Mas tinha uma atmosfera estranha pairando no ar... Sabe quando você sente que algo de ruim vai acontecer?
Ah! Deixa disso, Alice! Isso é coisa de humano pirado, gatos não sentem isso.
Mas um barulho se fez ouvir dentro do quarto. O que seria aquilo? Estava todos no andar de baixo, inclusive a cadela obesa. Deve ser psicológico – pensei.
Outro roído.
Não! Não era psicológico.
Olhei para a janela; estava aberta. E sobre o armário surgiram aqueles olhos azuis. Só houve tempo dos nossos corpos se chocarem e as unhas de ambos saltarem.
Era o maldito do Pirata!
- Eu disse que te pegaria, Alice! E agora você vai se arrepender de todas as vezes que me ofendeu e fugiu de mim!
- Me solta, Pirata, ou você vai se arrepender!
Era óbvio que eu estava blefando. Eu não fazia a mínima idéia do que fazer. Jurava meus bigodes que ele não voltaria, que aquele papo de “Eu te pego, Alice” era lenda. Quem me dera.
- Fique quietinha, Alice. Vai ser doloroso, mas rápido, eu prometo.
Não deu outra; meti as unhas na cara daquele pilantra.
- Maldita!!! – esbravejou.
Deu tempo de sair pela porta e, correndo em pânico, passar pelo corredor até perto da escada, mas me pegou novamente. Toda aquela adrenalina e medo me travavam e parecia uma retardada.
Ele cumpriu com o que dissera: ele me pegou. Foi rápido, da maneira como prometeu.
- Alice!
Ouvi a voz de Anny e vi a urgência dela, entre aquela afobação de tentar sair das garras daquele patife,  em subir as escadas e me socorrer.
- Solta ela, seu nojento!
E acertou suas costelas com a ponta daquele All Star remendado. Pirata saiu correndo atordoado cheio de medo e foi embora.
- O que ele fez com você, minha rainha? Fala comigo, Alice...
Eu não queria que ela me tocasse. Estava acuada no canto da parede, na defensiva, assustada, frágil e com medo.
Uma coisa pegajosa e vermelha escorria do meu rosto.
- Alice, seu rosto está sangrando? Meu Deus! Mãe está saindo sangue do rosto da Alice! Me ajuda!
Ela tentou por a mão em mim de novo. Neguei outra vez. Outra, outra e mais outra vez. Até que com insistência e amor, eu deixei que o colo dela me acalmasse. Toda aquela sensação estranha que eu sentia e não sabia o que era acabou virando só um detalhe.
E dormi.


- É minha culpa, Alice! A culpa é toda minha! Mande-me para a guilhotina, eu mereço!
Esse era Nino, no seu momento de dramaturgia grega.
- Eu deveria estar lá pra te proteger, é tudo culpa minha!
E o Oscar de maior gato dramático vai para...
- Arranque meus bigodes com uma pinça, Alice! Talvez eu me sinta menos culpado.
...Nino!!!
- Ah! Chega de asneira! Você está a quase uma hora se desculpando por nada.
- Como por nada, Alice?! Olha esse curativo da Hello Kitty na tua testa, eu deveria estar lá para te proteger.
- Nino!
- E se ele voltar?!
Era uma possibilidade distante pra mim, algo que não poderia tornar a acontecer e que eu preferia acreditar assim.
Estávamos sentados no telhado do vizinho e uma conversa na janela de casa me chamou atenção.
- Anny?
- Sim, mãe?
- Sabe aquele gato vagabundo que fez mal a Alice?
- O que tem aquele (adjetivo chulo censurado pela autora)?
- Morreu atropelado.
E um grito de “Aleluia!” ecoou no quarteirão.
- Você ouviu isso, Nino?!
- Que vai passar Os Batutinhas na Sessão da Tarde? Ouvi da TV do Seu Enersto. Isso não é novidade, passa todo mês...
- Não, cabeça de peixe. O Pirata morreu!
- Santo Noé da arca dos bixinhos! This is miracle!
- Isso merece uma festa! Hoje vamos para o apê do Algodão Doce e não saímos de lá até que um de nós dois caia embargo de leite fermentado.
- Leite fermentado? To dentro!
E foi festa a madrugada inteira. Tive de levar Nino nas costas de tão embriagado.
Desde então estava correndo tudo perfeitamente bem. Até que algumas semanas se passaram e um problema cresceu. Literalmente.
Cássia, a mãe de Anny, entrou no quarto enquanto eu tomava meu banho do fim das tardes.
- Anny, a Alice está grávida.
Epa! Que papo é esse, minha senhora?
- Claro que não, mãe! Ela só engordou alguns quilinhos – rebateu imediatamente minha dona, com a mesma feição incrédula que certamente eu carregava.
- Dá para ser um pouco menos ingênua? Veja só o tamanho da barriga dessa gata! Vai dizer que você não percebeu?
- Não que eu não tenha, mas... Ela não está preparada para enfrentar a maternidade! Ela é só uma criança!
Suspiros.
Tempos depois fui descobrir o que significava esse termo “estar grávida”. É quando um monte de bixinhos parecido com você cresce dentro da tua barriga, e uma hora eles têm de sair.
Até então tudo bem, achei o maior barato saber que tem um bocado de Alicinhas dentro de mim, se mexendo e interagindo umas com as outras. O que doeu foi saber a origem daquelas Alicinhas. Que Alicinhas como essas para serem feitas, era preciso uma gatinha e um gatinho.
E que aquele carnaval dentro da minha barriga, tinha sido promovido por Pirata.

Eu não estava livre dele; fazia parte de mim agora.


(Continua)


As Aventuras de Lady Alice - Os Herdeiros (CAP. 1) : http://migre.me/5xBmf
As Aventuras de Lady Alice : http://migre.me/5xBo4

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As aventuras de Lady Alice - Os Herdeiros.

Ouvi arranhões na janela de metal. Acordei num susto; dormia entre as pernas de Anny naquele edredom com cheiro de eucalipto do qual eu tanto gostava. Tentei ignorar enfiando a cabeça sob as patas, mas o roído não parava e aquilo estava começando a me aborrecer. Subi na cabeceira da cama sem acordá-la e, com os olhos estreitos, prestava o máximo de atenção.
- Quem está ai? – perguntei cautelosa.
- Sou eu, Alice!
Era um timbre familiar, mas eu sabia que não podia confiar nos meus sentidos já que estava semi-acordada.
- “Eu” tem nome, meu bem!
- Nino! É o Nino! Abra logo, Alice! É difícil se equilibrar aqui!
- E quem me garante que é o Nino? Diz qual é a senha!
- Senha?! Que história é essa de senha, Alice?
- Sem senha, não abro a janela.
- Hã... Deixa-me ver... Pelúcias?
Abri a janela na hora. Era mesmo Nino, com cara de encafifado.
- Ué? Era mesmo essa a senha?
- Não existia senha alguma. Eu sabia que só você julgaria uma coisa tão idiota como uma – ri baixinho - Mas me diz o que está acontecendo? Sabia que eu estava no meio de um sonho pra lá de legal?
- É que... É que tem um alguém querendo te ver e... Você tem de vir comigo agora mesmo.
Joguei-lhe um olhar estreito. Nino estava agindo de maneira muito estranha.
- Ih... Tem espinho nesse atum... Que está havendo, Nino? Quem está querendo me ver?
Nino parecia tenso. Acho que vi uma gota de suor escorrendo no teu rosto peludo. Eu só o via assim quando ele se sujava logo após chegar do petshop e sabia que levaria uma baita bronca de Daiane.
- Eu não posso dizer, Alice! Eu não posso dizer que o vira-lata do Pirata quer falar com você, porque ele não quer que você saiba e, caso souber, ele vai me enforcar com o esqueleto de um peixe!
Me espantei ao ouvir o teu nome. Um calafrio percorreu minha espinha, me custava lembrar toda maldade que esse tirano provocou.
- Pirata?! Ele ainda está vivo?
- Santo dos gatos! Soltei a informação!
- O que aquele zé ruelas quer comigo, Nino?
- Isso eu não sei, de verdade. Mas você precisa vir comigo.
Olhei para a lua, estava linda aquela noite. Logo para dentro do quarto, naquela pequena abertura da janela e via o rosto adormecido de Anny.
Talvez fosse a ultima vez que a visse.
Mas eu, como uma gata temida e destemida, não corria fora assim não.
- Me leve até ele.

Pirata estava me esperando na saída da viela. Eu já sabia disso mesmo antes de chegar, o fato é que o cheiro horrível dele acusava sua presença a quilômetros de distancia.
Aquele sujeito não prestava. Aterrorizava a vida de todos os gatos do Campanário e fora dele. Nino é exemplo de toda a bullying que Pirata foi capaz de praticar contra ele e o quão fez esse pobre gato ficar complexado devido sua patinha torta.
Assim que cheguei seu olho brilhou (pois um era de vidro e eternamente brilhava) de malícia e fez uma breve reverencia.
- Milady! Quanto tempo!
Ele continuava a mesma desgraça de sempre: Tinha os pelos encardidos, mas toda aquela sujeira quebrava em teu olho azul frio e profundo. Patas machucadas, bigodes cortados e cicatriz na costela. Era assustador.
Todavia, não me punha medo.
- Oi – respondi sua saudação, seca.
- Bom trabalho, Nino. Agora pode dar um fora.
- Eu fico!
Nino protestou, mesmo aparentemente estar morrendo de medo daquele vagabundo.
- Fica sossegado, Nino. Pode ir – Amaciei o camarada.
- Mas Alice...
- Faz o que ela disse, seu mauricinho – disse Pirata, de saco cheio.
E Nino se foi. Confesso que sem a presença dele ficava um pouco desconfortável, mesmo ele somente atrapalhando.
- Só nós dois, milady... Sentiu saudades?
Deu um passo a frente, mas logo recuei.
- Pensei que você tivesse morto.
- Esqueceu que nós temos sete vidas?
- Pra que voltou, afinal? Te expulsaram da onde você estava?
- Voltei por você, Lady Alice. Não podia ir mais longe sem antes... te possuir.
- Cara, por que não vai ver se eu estou fazendo intercâmbio lá na Babilônia? Sai do meu pé!
Dei as costas para ele e pretendia voltar para casa. Aquele retardado só tomava meu tempo.
Mas um golpe pelas costas me fez cair e quando me dei por mim, ele tinha imobilizado meu corpo. 

Regra #1: Nunca dê as costas para um inimigo.

Mas eu sempre me esqueço disso!

- Continua atrevida e petulante... Do jeitinho que eu gosto...
- Me solta, sua flanela de mecânico!
- É melhor ficar quietinha, Alice. Não é hora de me provocar.
- Por que acha que eu me envolveria com um andarilho que mora dentro de pneu feito você? Cai fora, criolo!
Senti sua pata afundando em meu pescoço. Já estava ficando difícil respirar. Nenhuma alma samaritana passava naquele instante perto da cena do atentado, nem mesmo Nino, o gato atrapalhão, que costuma chegar sempre quando a coisa ficava preta pro meu lado.
- Já disse para me soltar!
E desferi uma joelhada entre suas pernas. O babaca caiu na hora a se contorcer.

Regra #2: Quando seu inimigo é um macho, sempre apele para as partes baixas.

Era a hora da fuga. Levantei e corri como se não houvesse amanhã.
- Eu vou te pegar, Alice! Não importa onde estiver!
Aquele miado que ecoou entre a ruazinha que dava até em casa só me fez correr mais rápido, e em segundos já estava arranhando a janela. Aquela sensação de que ele chegaria a qualquer instante e me atacaria pelas costas quase me fez cair dura no chão.
- De novo, Alice?
Reclamou Anny, preguiçosa, sem mesmo se dar ao trabalho de abrir os olhos.
Mal ela entreabriu a janela e eu já estava dentro do quarto. Nunca fiquei tão feliz de ouvir aquela voz rouca de quem acabará de acordar derramando sermão.
Aquela noite eu não sairia de perto dela por nada.




(Continua)




Conheça outro conto da Rainha dos felinos;
As Aventuras de Lady Alice : http://migre.me/5xBo4

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Eu-lirico.

Espaços em branco me assustam. Anseiam ser preenchidos com sentimentos ou angustias que não sei expressar, tampouco formar em letras que bordaria esse vacuo. Ao menos os brancos que me deparo. Eles nunca pedem por algo suposta, superficial ou sinceramente alegre, porque sabem - e muito bem - que seria exigir de um pintor acrobacias.
É assim tão bom os espaços que tem ali cores; eles falam de si e de mim, me colocando, portanto, em uma situação confortável. Não me questiona exigindo coisas que não sei como dar.
Tenho saudade da minha infancia, onde tudo era eu e eu era tudo. Sabia recepcionar as coisas e quando não sabia, com muito gosto aprendia. Emoções novas eram como uma fruta doce num paladar amargo, e quando era algo ruim, experimentava uma vez para nunca mais provar.
Nesta realidade que me encontro infiltrada até o pescoço, repito os gostos amargos dizendo que seria a ultima vez, mas toda ultima vez acaba sendo a primeira.
Me encontro constantemente num mar de contradições e de marés altas. Me encontro, por vozes, em neblinas ofuscantes.
Meu lirismo aflorado aponta meu egoísmo, e o romancismo quase sempre prevalecendo. O desgosto de estar em dois quase sempre prevalece, e a vontade de ficar sozinha, coisa que outrora eu não suportava, vem se aprimorando e querendo cada vez mais espaço.
E quando tudo muda de proporções, quando a vontade de estar em dois, não sei manipular esse apetite duma forma que me favoreça. É tudo dolorido - pois tudo dói, guarde isso consigo.
Os meus espaços em brancos sempre voltam, me pondo em frente comigo mesma, pedindo respostas de perguntas que eu não sei.
E toda essa atmosfera tensa e complexa me faz querer terminar esses versos sem um fim plausivel ou que faça sentido - não que deva, o que nós sentimos não tem de fazer sentido. Porque não faz.
Não faz.

domingo, 6 de março de 2011

Definindo-se num domingo de março.

A junção singela, precisamente contida e sem demasia, de uma porção de vazios, vontades e verdades. Complexos próprios e impróprios de uma mulher precocemente culta; oculta nos seus sentimentos abstratos, inexplicáveis. Adicionando uma porção de luzes ofuscadas, frustrações variáveis em tipos e tamanhos, uma parcela vasta de ideais, concebe a verdadeira essência do que supostamente parece ser essa criança, garota ou mulher, cujo interior sensível e repleto de uma camada saliente e viscosa de opressões, palavras não ditas, lágrimas não vertidas, assim como força e capacidade crítica, criando um ambiente de pura e irônica contradição. Seu exterior reflete o necessário e por vezes, o desnecessário. Suavemente vibrante e eloqüente, carrega a vida no ventre, uma bela anfitriã ao receber os males e tristezas, capaz ainda de fazer poesia com seus malefícios.
Tem a ousadia de atravessar o estado, entrar no elevador e apertar o número do teu andar; visto que não valeria apena, recuaria no ato de apertar a campainha, e faria o trajeto de volta, vazia. 
Presa na responsabilidade de ser um paradigma que é a realidade do ser feminino, faz jus ao teu sexo, aplicando pontos de interrogação em mentes alheias. 
Por fim, é poeta, mas não sabe amar. 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Gim para um coração quebrado.

- Garçom, uma dose de gim.
E assim, no final amargo de cada copo, iniciava outro com essa frase. Só não me lembro quantas vezes foi dita.
- Laura, não acha que está exagerando?
Por que o garçom sabia meu nome? Talvez eu tenha dito no intervalo entre uma lamentação e outra. É o que mais acontece nesses barzinhos no centro da cidade, onde as mulheres assumiram o posto de aplacar a dor com álcool. Os homens ficam por ai, nos dando motivos para voltar ao mesmo lugar. Cheios de si, intocáveis e Alfas.  
- Peter, por que o ser humano não consegue viver sozinho? Sabe... Ter um cachorro ou um gato, um emprego que gosta e levar a vida assim.
Eu sabia o nome do garçom. Devo ter perguntado quando disse o meu. E não sei por que, no meu tom de voz havia intimidade. Até quando o tal do Peter sorria com a minha indagação, olhando para a garrafa de Stock Blue.
- Provavelmente não conseguiríamos. Mesmo se fossemos feitos para viver sozinho, certamente levantaria um homem em meio a multidão e afrontaria a natureza perguntando porque não poderia se ajuntar com outra pessoa, ter uma família e envelhecer juntos. Isso tem muito a ver com os vazios que cada um nasce. Mas é quase certo que entre os contados vazios que nascemos, um é exclusivo para oura pessoa preenche-lo. Não são tantos os vazios pela capacidade do ser humanos de ter fetiches e gostos. Me entende?
- Você é um poeta, Peter.
Ele falava muito. Também devia ser sozinho. Demorava um pouco para processar a filosofia do garçom, afinal, meu raciocínio não era o mesmo de seis copos atrás.
- Laura, falo sério, deveria parar...
- Olha bem pra minha cara e coração. Pareço estar brincando?
Eu sou forte. Apenas devo ter esquecido a força dentro do porta-luvas do carro, assim como esqueci o mesmo na garagem.
- Deixei o disco do Beatles favorito dele tocando na vitrola, o vinho que ele mais gosta sobre a mesa e a porta entreaberta...
- Há quanto tempo ele não volta?
- Quatro... Cinco...
- Horas?
- Meses.
Peter não me devia deixar beber tanto. Talvez porque cada dose eu dava um motivo, sabe... Uma justificativa para estar pondo para dentro do meu corpo aquela forma covarde de paz, e já que as razões nunca acabavam – eram tantas... - ele deixou que meu barquinho fosse se afastando da margem. 
- Peter...
- Sim, Laura.
- Eu só queria amá-lo... Eu não pedi nada em troca... Nem mesmo o amor dele...
- Você disse isso pra ele?
- É preciso dizer a uma larva a hora de sair do casulo e virar borboleta?
- Não.
- Então. Tem coisas que não precisam ser ditas.
O balcão era de mármore, frio contra meu rosto. Minha cabeça girava e isso me enjoava. Eu não via mais nada; fechei os olhos e neguei abri-los.
Acordei junto com o sol. O bar estava vazio, o garçom limpava as mesas. Havia um relógio sobre a prateleira de bebidas. 06h20min. Joguei duas notas que me apeteciam sobre o balcão e sai sem dizer nada.
Come Share My Life da Legião Urbana tocava ao fundo da minha cabeça que pesava mais que meu corpo. Me equilibrava sobre saltos que me arrependi de ter comprado. Na minha boca tinha um gosto amargo, então me lembrei de ter vomitado. Soltei pra fora junto com lágrimas que refletiam a dor da minha alma tudo o que doía tanto. Mas dor se regenera, sempre se reconstrói, e volta com mais sete demônios. Joguei fora todo o álcool que consumi; como se tudo que fosse brindado no nome daquele que não me amou, mas deixou marcada em mim o cheiro da tua pele, o meu organismo não aceitasse, então me fazia se livrar daquilo. Passava na Rua do Manifesto, ali no Ipiranga, não tinha ninguém e meus passos faziam muito barulho; parecia acordar o bairro inteiro. Começou a garoar então, notei minha boca seca. Avançava suavemente o rosto ao vento na sorte de alguma gota acertar meus lábios rachados.
Meu coração ainda doía, e misturada da dor de cabeça a aguda razão do meu estado emocional e físico. Me senti nada. Me senti lixo. Um monte de cinzas que o vento levou para onde ninguém procuraria.
Peguei um Taxi, mandei o motorista ficar rodando até eu decidir onde queria ir. Propositalmente num ato masoquista fiz ele passar na frente daquela casa branca de dois andares, número 1124 próximo ao centro da grande São Paulo.
Meus olhos atravessaram as paredes e vi cabelos ruivos sobre seu peito. Respirações calmas, sorrisos congelados em rostos adormecidos.
- Motorista, conhece algum bar aqui perto que esteja aberto?
Seu rosto estava confuso, se indagando porque uma louca que acabará de sair de um bar queria ir de encontro com outro novamente. Era melhor que não soubesse o motivo, eu só precisava de outra amnésia. Uma amnésia suficiente para apagar a imagem de pernas entrelaçadas e mãos tão unidas. Tudo o que não foi meu, mas foi tirado de mim.
-  ...A moça tem certeza...?
- Olha para minha cara e coração. Pareço estar brincando?

domingo, 9 de janeiro de 2011

Aprendendo a "desamar".

Desde pequena aprendi que na vida, para saber engoli-la e seguir em frente, é estabelecendo metas, inventando felicidades, não tendo apego demasiado por gente. Apega-te a animais, é mais saudável – por este motivo tenho quatro gatos e uma tartaruga. Mas não viva sem sonhos. Se não possui, molde um e peite-o, apenas para acordar de manhã e ver que teu dia não vai ser em vão. Aquele papo todo de ter uma razão para viver (além do fato de sermos obrigados a tal), mas nunca sendo essa razão, um alguém. Tem de ser alguma coisa; dinheiro, carro, uma estrela, viver por que gosta de ver a lua a brilhar, pelo suco de laranja que toma pelas manhãs ou por aquele CD do Beatles que você tem de ouvir todas as noites. Se acordar algum dia e tomar conta de que teu cérebro inconseqüente raciocinou a conclusão iníqua que você vive por alguém, e mesmo sabendo bem no fundo da tua alma estupidamente sensível e incoerente que é obscura ilusão, mas mesmo assim você sorri ou leva a mão à testa, indignado. Eu te digo: corra! Corra para fora de tua casa, de teu apartamento, do teu loft alugado e vá até uma loja de grife e estoure o teu cartão de crédito do limite mais alto como se não existisse aquele monstro de sete cabeças chamado fatura ou aquele futuro mais próximo rotulado como amanhã. E vá ao bar, entrega tua carteira ao garçom e diga ele para trazer tudo o que te faça criar vergonha na cara. Provavelmente ele perguntará “De que tipo precisa?” você responde “Que prove a mim mesma que a base da minha existência é um CD do Beatles” ele vai sorrir para você. Acredite em mim, eles são bons em amnésias. Logo após a ressaca e um café bem forte, ligue para uma agência de viagens caríssima e agende a tua ida a França o mais rápido possível. Ar francês vai purificá-lo. Ao chegar lá mudará o nome e pintará o cabelo, reverá sua personalidade e usara roupas vermelhas, o propósito é investir no estilo “Carmen Sandiego”. O resto fica por tua conta.

Mas... Se por uma peça do destino, esse qual o objetivo é fazer nascer arquitetos diplomados em nossa já difícil vida para desenhar e preparar a construção de muralhas em nosso caminho, esse plano não der certo: sente-se, respire, ligue o acondicionado, tome uma dose de whisky – não exagere nos cubos de gelo. Agora pode gritar histérico e entrar em pânico: o vírus chamado “amor” te armou uma cilada e vai destruir tua vida.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

As aventuras de Lady Alice.


00h00min, a janela está fechada. Thauany tem mania de fechá-la para que eu não saia (e também acredita que algum ser sobrenatural vá entrar por ela), mas esquece sempre da janela do quarto de costura da sua mãe ou da lavanderia. Verifico se ela está dormindo, e fujo por uma fresta da janela de metal do outro quarto até o telhado. Encontro Nino, o siamês das filhas do Valdemar, o vizinho. Ele sempre costuma passear esse horário. Nino já foi apaixonado por mim, mas deixei bem claro que não sou tipo de gata que se apaixona por qualquer um. Aliás, fui ainda mais clara; não me apaixono por ninguém. Mas confesso que seus olhos azuis me atraem.
- Oi, Nino. Observando a lua?
- Alice! Que bom que apareceu.
- O que houve?
- Estou me sentindo sozinho...
- Não seja patético, Nino. Tem de ser mais viril, assim como os cães.
- Sabe como é... As noites são perigosas...
- Gatos de raça são mesmo uns medrosos!
Ouvia-se um miado doloroso nas ruas de baixo. Era típico algum gato em apuros nessas redondezas onde tinham tantos cachorros de ruas ou gatos malandros que adoravam botar medo nos que tinham um dono.
- Ei, Nino. Ouviu isso? Vamos lá ver!
- Perdeu o juízo?!
- Deixa de ser medroso!
Descemos até o escadão. Nino tinha os pêlos da calda eriçados de tanto medo. Segui em frente, para protegê-lo. Passamos pela ruazinha escura até a outra rua. Estava deserta, afinal, já era de madrugada e a rua tinha pouca iluminação. Na verdade tinha apenas um poste de luz ligado. Aquela luz laranja e ofuscada iluminava a entrada de um beco. Fora de lá que veio o barulho – é de lá que vem todos os barulhos. Fomos até lá (com muita relutância de Nino). Logo no início tinha um gato cinza, magricela, os olhos verdes – um deles tinha uma cicatriz.
Cheguei logo peitando, comigo não há rodeios. Aquele gato tinha cara de relaxado, e devia agüentar nem mesmo uma briga com um sabiá.
- Que ta pegando, chefia?
Usei meu vocabulário de “maloqueiro”. Aprendi em uma das conversas da Thauany. Ela disse que os malandros da rua falam assim, e que tinham de usar essa linguagem para se comunicar com eles, caso contrario não compreendiam.
Aquele gato metido me estudou por uns longos dez segundos. Pra ser sincera eu senti uma ponta de arrependimento pela malandreza súbita da minha parte.
- E quem vocês pensam que são?
- Olha, somos perigosos, ta bom?
- E é? Gatos com coleira não são perigosos.
- Como se vocês manés, magricelas metidos a gângster, valessem algo!
O “cinzinha” grunhiu. Vinha em nossa direção.
- Olha o que você fez, Alice!
Sussurrou Nino. Capaz de seus pêlos estarem caindo de tanto medo.
- Ora, ora, ora... Veja se não é Lady Alice.
E surgiu do fundo do beco um gato branco, peludo, e ao contrário do resto, não era magro e raquítico. Era manco. Pimpão é seu nome.
- É um prazer vê-lo, Pimpão. – Dei as boas-vindas.
- Acalme-se, Alex.
O gato cinza recuava. Era um bobão, não agüentaria dez minutos de pancada comigo, tenho certeza.
- É, acalme-se, Alex. – Provou Nino.
- Vejo que está acompanhada...
- É, esse é o Nino, gato do vizinho.
- Prazer, Nino.
- Oi...
Nino era mesmo um babaca. Não podia demonstrar medo, mas acho que essa palavra estava tatuada na sua testa.
- Bem, o que devo a honra da sua presença por aqui, Lady?
- Sabe qual é, Pimpão? Nino e eu estávamos numa partida importante de xadrez, e um barulho muito alto nos atrapalhou, e veio daqui. Daí viemos pedir para que fizessem menos barulho.
- Perdoe-nos, Lady. Talvez exageramos na festinha.
- Festinha?! Tem ração com naguetes? – Disse Nino.
Mas era mesmo um paspalho esse gato!
- Talvez vocês queiram entrar para ver...
- É muita gentileza sua, Pimpão. Mas Nino e eu ainda temos que terminar aquela partida de xadrez, não é, Nino?
- Ora, vamos entrar um pouquinho, Alice. Estou faminto.
- Você ficou idiota?!
- Entrem, entrem. Será um prazer recebê-los...
Gato tinhoso! Vai é fazer picadinho da gente. Nino era mesmo um mané, sempre batendo bola fora. Dois gatos pretos se aproximaram. Não adiantava recuar, nos seguraram e nos arrastaram até o fim do beco. Nino como esperado gritava feito louco por socorro. Lá tinha dois gatos siameses presos contra a parede pelas patas com esqueleto de sardinhas. Clichê.
- Temos mais convidados.
- Me soltem, seus fanfarrões! Deixa só a sociedade ser adepta a escravidão a gatos pretos e vocês vão ver o que é bom pra toce!
- Cale-se, sua mimada! – Gritou Pimpão. – Já te suportamos demais. Perambula por ai, achando que é alguém, achando que tem poder. Quem manda nessas áreas somos nós!
A turma dos gatos vagabundos miaram em concordância.
- Pegamos esses siameses andando por nossas bandas. – Disse o gato cinza da entrada.
- Vocês são uns armadores. Duvido encararem a turma do Pelé no centro de Diadema. Aqueles são gatos de verdades. Não são como vocês, comedores de lixo e andarilhos prodígios. 
- Alice, você bem que poderia ficar quietinha... – Comentou Nino, tremendo as patas.
- Basta! Você fala demais, gata atrevida!
- Soltem Nino e eu se não vocês veram!
- Rapazes, arranquem-na os bigodes, para que fique quieta.
Estava na hora. Eles me subestimavam muito. Apliquei meus golpes de karate nos dois gatos pretos que seguravam a mim e Nino. Caíram em locaute.
- Peguem-na!
E saiu gato de tudo quanto é lado! Do céu, do asfalto, de trás das estrelas. Não importava, não eram páreos para mim. Bastou um golpe de “garras coletiva” e metade foi eliminado. Foi possível ver apenas rabo de nego pra lá, pata de ciclano pra cá. Meia dúzia veio em nossa direção. Invoquei meus poderes ocultos, dizendo “miau” ao contrario três vezes, um circulo de fogo se fez ao redor de mim e Nino. Foi feito churrasco de gato da forma mais literal possível. Tinha mal passado, bem passado e grelhado. Três foram atrás de Nino, que gritava feito louco.
- Aliceeeee!
- Não tenha pânico, Nino!
Foram pegos pelo rabo. Girei todos no ar, e os lancei tão alto, que é capaz terem caído na praça do Jardim Miriam.
- Ahá!
- Atrás de você, Alice! – Gritou Nino.
Era uma maçã podre. Acertou minha cabeça em cheio. Era o chefão, Pimpão. Havia me esquecido dele. Me arrastou pelas patas traseiras até o fim do beco.
- Achou que iria escapar, Alice? Vingarei-me de você.
- Me solta, perneta!
- Petulante!
Suas garras enormes se revelaram. Juro que me arrepiei até onde não se é possível arrepiar no corpo de um gato. Eram enormes! Estava acabada.
Eis que surge Nino, o gato louco!
- Yaaaaaaaaaa!
Foi preciso apenas uma chave de perna no pescoço gordo de Pimpão, e o gato branco caiu desmaiado. Tinha incorporado o Jack Chan encapetado em Nino!
- Caramba, Nino! Não conhecia esse teu lado “Ninja Assasino”.
- Me empolguei com a temática do momento.
- Ei! Ajudem-nos!
Eram os gatos presos na parede. Estavam todos muito machucados. Soltamos os dois.
- Pobres gatinhos...
- Vocês nos salvaram! Como podemos agradecer?
- Me mande um cheque por Sedex e ficamos quites.

Nino e eu voltamos até o escadão.
- Só você para nos enfiar em uma dessas, Alice.
- Relaxa, Nino. Te pago uma tigela de leite e você fica bem de novo.

De volta ao telhado, pulei até a janela do quarto. Estava fechada. Bati nela. Arranhei. Miei. No silêncio da noite, pude ouvir mesmo de fora o som da cama rangendo, o peso de um pé pisando o chão, resmungos e a janela abriu.
- Isso é hora de chegar, Alice? – Protestou Thauany. Parecia uma louca com os cabelos desgrenhados e a cara amassada. Olhei para ela como quem não sabia de nada e entrei.
- Vamos rever esses seus horários amanhã.
Miei em protesto. Ela quer que eu viva aqui nesse quarto, com essa cachorra chata e sedentária? Mas nunca!
Ela voltou para cama, e me aconcheguei ao seu lado. Foi uma noite longa e cansativa.